Haftar, salafistas na Líbia e o uso político do islã no Oriente Médio

Haftar: salafistas são seus aliados (Foto: Reprodução)
Haftar: salafistas são seus aliados (Foto: Reprodução)

A manipulação do islã pelas ditaduras e monarquias do Oriente Médio é um aspecto sem o qual é impossível entender os problemas do mundo muçulmano. Atualmente, na Líbia, está em curso um processo que ajuda a demonstrar como esta dinâmica se dá.

A grosso modo, a Líbia encontra-se dividida entre dois governos, um apoiado pela comunidade internacional, mas sem legitimidade interna, e outro que tampouco conta com suporte nativo, mas que vem sendo cortejado por uma cada vez mais assertiva Rússia.

O segundo é liderado por Khalifa Haftar, um ex-general de Muamar Kadafi que voltou ao país após o linchamento do ditador para tentar substituí-lo. A base de Haftar é o leste da Líbia, mais especificamente as cidades de Marj e Tobruk. Sua coalizão, assim como a adversária, é um composto de retalhos surgido a partir do mosaico de divisões tribais, territoriais e étnicas que emergiu após a morte de Kadafi.

Nos últimos anos, Haftar vem construindo uma imagem à semelhança de Abdel Fattah al-Sissi, o ditador do Egito. Líder do golpe de julho de 2013, Sissi se tornou símbolo do combate à Irmandade Muçulmana, o mais importante grupo do chamado islã político.

Essa ideologia é composta por pessoas e instituições para as quais o islã não é só uma religião, mas um abrangente sistema que pode resolver qualquer problema político, econômico ou social criado pela modernidade.

Para levar a cabo sua empreitada, Haftar realiza uma sistemática campanha para suprimir a pluralidade de seus opositores e retratá-los como apoiadores do islã político (islamistas) e, em sua visão, facilitadores do terrorismo, como mostra a entrevista abaixo.

Com esta estratégia, Haftar atraiu o apoio de governos que também combatem o islã político, como os do Egito e dos Emirados Árabes Unidos. Para o mundo externo, a imagem que Haftar tenta passar é a de bastião da “guerra ao terror”.

“Lembramos ao mundo que nosso exército está combatendo o terrorismo em seu nome“, disse Haftar em março de 2015, antes do Estado Islâmico se firmar na Líbia.

Salafismo na Líbia

A polarização projetada por Haftar esconde detalhes importantes. Um deles: integram a coalizão de Haftar, com sua anuência e apoio, salafistas ultraconservadores, religiosos que podem ser considerados parte do islã político, mas que estão à direita de movimentos como a Irmandade Muçulmana. A maioria dos salafistas é não-violenta, mas está próxima ideologicamente de grupos terroristas como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico.

O salafismo é uma vertente do islã sunita, sendo praticada em todo o mundo, em especial na Arábia Saudita, onde carrega o nome de wahabismo. Na Arábia Saudita, os wahabistas foram usados nas décadas de 1980 e 1990 para contrapor o peso de movimentos derivados da Irmandade Muçulmana, ganhando proeminência. Teve papel de destaque nesta empreitada o clérigo saudita Rabia bin Hadi al-Madkhali, que promove uma doutrina de obediência ao governo posto, desde que este seja muçulmano.

Na Líbia, os salafistas são predominantemente seguidores de Madkhali e, desde que Kadafi caiu, participam dos conflitos que afetam o país, integrando lados diferentes da batalha, às vezes em brigadas exclusivamente salafistas, mas também espalhados em outras corporações militares.

Na coalizão de Haftar, esses salafistas têm ganhado poder e influência. Apesar de sua ideologia ser próxima à do Estado Islâmico e da Al-Qaeda, Haftar promove os “madkhalis” apostando que eles ajudarão a dar legitimidade política e religiosa a seu governo.

O resultado disso é uma visível islamização da sociedade, com a crescente aplicação de uma ideologia radical. Dois exemplos recentes são marcantes.

Em 22 de janeiro, salafistas apoiados por Haftar confiscaram livros de autores como Paulo Coelho, Dan Brown, Friedrich Nietzsche e Naguib Mahfouz que estavam sendo levados de Tobruk para Benghazi, sob a alegação de que promoviam o cristianismo, o xiismo e o sufismo.

No mês seguinte, autoridades do leste da Líbia proibiram que mulheres com menos de 60 anos viajassem sozinhas, alegando questões de segurança. A medida foi recebida com inúmeros protestos e em seguida transformada em uma proibição de viagem para todas as pessoas entre 18 e 45 anos.

O processo em gestação no leste da Líbia, sob os auspícios de Haftar, trata-se exatamente do mesmo que ocorre sob regimes autoritários em todo o Oriente Médio. É uma busca por legitimidade que traz em seu núcleo aspectos intrinsecamente instáveis.

O primeiro é o fato de que os salafistas, a fonte da legitimação, são um corpo religioso de tendências ultraconservadoras, cuja atuação inevitavelmente acaba por radicalizar e polarizar a sociedade. O segundo é que a ideologia que legitima o Estado/governo pode ser facilmente modificada para justificar sua rejeição. Foi isso o que ocorreu na Arábia Saudita dos anos 1980 e 1990, um processo barrado pela monarquia local com a ajuda de Madkhali, o inspirador dos salafistas líbios. Nada impede que parte desses religiosos eventualmente se volte contra o governo.

É desta forma que surge o ciclo de autoritarismo e radicalismo que está na base do terrorismo. Haftar não é, ao menos por enquanto, um ditador árabe, mas age como eles.

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