A Irmandade Muçulmana quer perseguir os coptas?

Um texto publicado na terça-feira 23 pelo site Reaçonaria causou um certo choque em mim, um observador atento do Egito. Assinado pelo estudante de Direito Gilmar Siqueira, um “conservador, católico, austríaco e reaganista” segundo sua própria descrição, o artigo é mais uma tentativa desastrada de demonizar a Irmandade Muçulmana, fugindo à proposta de debate inteligente proposto pelo site. O texto serve, ao menos, como uma oportunidade para discutir a situação dos cristãos coptas no Egito e algumas características do fundamentalismo islâmico.

Siqueira abre seu texto falando sobre pogroms (nome dado aos massacres de judeus no Império Russo) e insinua que a violência ocorrida em Al-Khosous em 5 de abril, na qual morreram cinco cristãos coptas e um muçulmano, teria sido um ataque deste tipo. O confronto está sendo investigado, mas Siqueira já tem uma conclusão. Segundo ele, a fala do bispo Dom Rafael, um líder cristão, “comprova” que os muçulmanos (todos?) são culpados e “sugere” que os muçulmanos (todos?) querem expulsar os coptas do Egito. Na vanguarda deste movimento está, ainda segundo Siqueira, a Irmandade Muçulmana, que tem entre seus “objetivos criminosos” a “perseguição aos coptas”.

Os coptas e as três identidades coletivas do Egito

Ao contrário do que faz crer o autor, que atribui à Irmandade os problemas dos cristãos, as origens das dificuldades dos coptas no Egito são muito mais complexas.

Mulheres na costa de Alexandria em 1955, fim do período cosmopolita do Egito. Foto: Cortesia Elie Moreno para a Foreign Policy
Mulheres na costa de Alexandria em 1955, fim do período cosmopolita do Egito. Foto: Cortesia Elie Moreno para a Foreign Policy

Ao chegar ao poder em 1956, quatro anos após o golpe dos Oficiais Livres (apoiado pela CIA), Gamal Abdel Nasser (1956-1970) transformou o Egito no centro do nacionalismo árabe, o pan-arabismo. Um dos efeitos da ascensão da ideologia pan-arabista (qawmiyya) de Nasser foi o enfraquecimento do nacionalismo local egípcio (wataniyya), uma força baseada no passado faraônico do país, que floresceu durante a modernização do século XIX e da primeira metade do século XX. No período da wataniyya, no qual o Egito era um centro cosmopolita e altamente secular, ser egípcio estava acima de ser cristão ou ser muçulmano.

A perda de espaço do nacionalismo local foi acompanhada de uma maior aproximação do Egito com o restante do mundo árabe, majoritariamente muçulmano. Esse reposicionamento do Egito promovido por Nasser abriu espaço para a terceira identidade coletiva egípcia, o islamismo (islamiyya), que viria a se consolidar no governo Anwar Sadat (1970-1981).

Sadat promoveu uma volta à religião no Egito e usou grupos religiosos, diversos deles violentos, para contrapor a força política de marxistas e nasseristas que ameaçavam seu governo. Esses grupos cresceram em influência graças aos efeitos da infitah, programa de liberalização econômica de Sadat que atraiu muitos investimentos internacionais ao Egito, mas que ampliou a desigualdade social e destruiu o pequeno estado de bem-estar social, abrindo espaço para organizações islâmicas. Entre elas estava a Irmandade Muçulmana, mas não só ela. Havia naquele período uma série de dissidências e debates ideológicos entre os islamistas, como ocorre até hoje.

Com Hosni Mubarak (1981-2011), o Egito entrou num período em que se transformou no principal exemplo do processo que Peter Demant chama de “acomodação de determinadas exigências das populações e dos islamistas por meio de uma democratização limitada”, que provoca o crescimento e legitimação da tendência fundamentalista e uma “islamização rastejante da sociedade, cuja tendência política é antidemocrática ou pelo menos antiliberal”.

A Irmandade no poder e a situação dos coptas

Como se vê, o que Siqueira faz é atribuir à Irmandade Muçulmana um problema que é do Egito. A Irmandade é produto, e não a origem, de uma sociedade em que, hoje, apenas 18% da população aceita a ideia de uma mulher se tornar presidente.

De fato, a chegada da Irmandade Muçulmana ao poder, acompanhada da ascensão dos salafistas (ultrafundamentalistas) causa muita apreensão na população copta. Não há dados oficiais, mas muitos já teriam deixado o país desde que Mohamed Morsi foi eleito presidente, em junho de 2012. Entre os que vão ficar no Egito há os dispostos, como mostra reportagem da Reuters, a responder com violência a qualquer tipo de ameaça.

Ao assumir o poder, a Irmandade assumiu também a responsabilidade de cuidar dos problemas do Egito e, entre eles, está a questão copta. Como em diversos outros setores, a atuação do governo dos irmãos muçulmanos para proteger as minorias é uma lástima até aqui, por fatores provocados pelo próprio governo e outros nem tanto.

Morsi deu espaço a alguns coptas no governo, mas não estendeu a mão a essa comunidade como deveria fazer um presidente republicano. Morsi também não foi à cerimônia de posse do papa Tawadros II, uma ausência carregada de simbolismo, e é acusado pelo ex-coordenador do Comitê Nacional de Justiça, formado para reduzir as tensões religiosas no país, de negligenciar o órgão. No conflito em Al-Khosous, a polícia, que parece não estar totalmente sob o controle do governo, não protegeu a Catedral de São Marco como deveria fazer.

O governo da Irmandade se mostra, por enquanto, incompetente para lidar com este problema, assim como ocorre com diversas outras questões que afetam igualmente coptas, muçulmanos e não religiosos do Egito, como pobreza, desemprego, economia em frangalhos, Judiciário injusto e violência política. Daí a afirmar que o objetivo dos irmãos muçulmanos é expulsar os coptas do Egito é um enorme salto, que Siqueira faz com o uso de uma acusação grave: a de que a Irmandade Muçulmana foi “durante a Segunda Guerra Mundial financiada pela Alemanha Nazista” e até hoje é um grupo fascista.

O mundo árabe durante a Segunda Guerra Mundial

Ao contrário do que escreve o autor convidado da Reaçonaria, neste caso para bom entendedor meia palavra não basta. Há um intenso e complexo debate na academia norte-americana e europeia a respeito de uma suposta natureza fascista do islamismo (o islã político). O debate deriva do papel que árabes e muçulmanos tiveram na Segunda Guerra Mundial.

A história mostra que houve relações entre a Alemanha Nazista e árabes e muçulmanos. Basicamente, elas se deram em duas dimensões distintas: a prática e a ideológica.

Seguindo o condenável princípio de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”, muitos árabes e muçulmanos apoiaram a Alemanha, pois viam na vitória do Eixo a melhor forma de garantir o controle árabe da Palestina Histórica (onde hoje estão Israel e os Territórios Ocupados), em disputa desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Foi particularmente importante nesta empreitada o mufti de Jerusalém, Haj Amin Al-Husseini, cujo relacionamento com o Nazismo é bastante documentado. Na dimensão ideológica, parece inegável que ao menos parte do antissemitismo no Oriente Médio tenha origem no antissemitismo europeu.

É importante salientar, entretanto, que nem todos árabes ou muçulmanos estavam do lado do Eixo por conta da Palestina. Muitos palestinos serviram no exército britânico e centenas de milhares de árabes do Império Francês lutaram pela libertação da França.

A Irmandade Muçulmana é um monólito, incapaz de mudar?

Há debates sérios a respeito da relação entre o fundamentalismo muçulmano e o nazismo (como este entre Marc Lynch, Paul Berman e Jeffrey Herf na Foreign Affairs), mas usar uma parte da história para deslegitimar a Irmandade Muçulmana e atribuir a ela o rótulo de perseguidora dos coptas é um passo longo demais.

Mohamed Badie, o atual Guia Supremo da Irmandade Muçulmana, é um conservador. Foto: Wikimedia Commons
Mohamed Badie, o atual Guia Supremo da Irmandade Muçulmana, é um conservador. Foto: Wikimedia Commons

Fazer isso é ignorar dois aspectos essenciais. Em primeiro lugar, o fundamentalismo muçulmano é um produto da sociedade árabe-muçulmana. Ele foi, e ainda é, transformado por debates ideológicos travados dentro dessa sociedade. Qualquer influência do nazismo há 70 anos tem hoje um papel insignificante nesses debates diante de acontecimentos e condições regionais, como as três guerras árabes contra Israel, a falta de democracia, a Revolução Iraniana, o 11 de Setembro e o Despertar Árabe.

Em segundo lugar, é preciso ter em conta que a Irmandade Muçulmana, por ser muito dividida em facções internas, é altamente contraditóriaHoje em dia, uma de suas maiores contradições é conciliar sua instância anti-Ocidental com o desejo de sua liderança de manter uma boa imagem no Ocidente. Este dilema ainda não está resolvido. Como conta Marc Lynch na Foreign Policy, pouco antes da derrubada de Mubarak a facção mais conservadora da Irmandade assumiu o controle do grupo, afastando os moderados da tomada de decisões. Isso explica o comportamento paranóico do grupo hoje em dia e a falta de habilidade dos irmãos muçulmanos em fazer acenos a outros setores da sociedade egípcia, como os coptas, que se sentem desprotegidos. Ocorre, entretanto, que a Irmandade Muçulmana é um grupo altamente pragmático. Assim, o desejo e, agora como governo, a necessidade de ser bem vista no Ocidente (e continuar tendo aliados estratégicos, como os EUA e o FMI) pode fazer os irmãos caminharem para a moderação, o que implicaria, entre outras coisas, em proteger de forma clara as minorias e os coptas.

Estigmatizar a Irmandade Muçulmana é, além de não entender a história e a atualidade do grupo, contraproducente, pois serve para ampliar o grau de paranoia de sua liderança. Assim como todos os outros atores políticos do Egito, a Irmandade precisa de espaço para dilapidar suas ideias, mas será cobrada a mostrar capacidade de dialogar e conviver na democracia. A resposta do grupo a este desafio não foi dada na Segunda Guerra Mundial. Ela está sendo escrita agora.

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